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Impostos

 

Há tempos, numa acção de formação para professores, foi pedido aos participantes que escolhessem de uma lista cinco comportamentos eticamente reprováveis. Dos dezanove ou vinte formandos apenas um considerou a fuga aos impostos como condenável. Este episódio documenta bem o modo como os cidadãos encaram as suas relações com o Estado e com o fisco, e que podem ser traduzidas na seguinte máxima: exigir o máximo e pagar o mínimo . O que quer dizer que, com excepção dos trabalhadores por conta de outrem, que pagam e não bufam, todo aquele que vá cumprindo de moto próprio as suas obrigações fiscais é considerado um tolo. Do mesmo modo, todos os que não procuram esquemas mais ou menos mirabolantes para sacar uns cobres ao Estado são ingénuos, sendo certo que, se não for eu a sacar esse dinheiro, outro mais vivaço o fará. Trata-se, afinal, de fazer prevalecer o interesse pessoal sobre o interesse colectivo.

Em qualquer sociedade humana há interesses comuns que vão desde a defesa e segurança até a protecção na velhice, passando pela educação das novas gerações, a prestação de assistência médica, a construção e uso de infra-estruturas de todo o tipo. Ora, essas tarefas complexas e vitais são da responsabilidade da sociedade no seu todo e não dos cidadãos, individualmente considerados. Para isso as sociedades organizam-se em Estado e concedem-lhe os meios necessários à execução das suas tarefas sob a forma de impostos.

Através do fisco a sociedade canaliza para o Estado recursos financeiros que visam fundamentalmente assegurar a manutenção dos equipamentos de uso colectivo, a prestação de serviços de todo o tipo (lembro apenas a educação e a saúde), bem como a construção de novas infra-estruturas. A quantidade e qualidade dos serviços e equipamentos que o Estado pode disponibilizar aos cidadãos depende da quantidade de recursos que lhe forem atribuídos, e da eficácia da sua gestão, como é óbvio.

Como membros e beneficiários desses equipamentos e serviços, cada um de nós tem o dever de contribuir, através dos impostos e na proporção das suas possibilidades, para a sua viabilização. Isto é, o direito de usufruir desses bens e serviços tem como contraponto o dever de ajudar a custeá-los. Ora é exactamente a não assunção dessa união indissolúvel entre direitos e deveres que explica a fragilidade da consciência cívica em países como o nosso.

Toda a gente está de acordo com o princípio genérico de que sem impostos o Estado não pode cumprir as suas funções; simultaneamente quase toda a gente pretende que é legítima a evasão fiscal. Como é que explicam esta evidente contradição?

Muitos justificam a sua atitude com a alegação de que as taxas aplicadas são excessivamente elevadas, o que na realidade é dizer coisa nenhuma, visto que, numa certa perspectiva, qualquer valor superior a zero é elevado. Isto é, tudo aquilo de que temos de prescindir implica sacrifício. Por outro lado, não se trata de abdicar de algo, mas de trocar recursos financeiros por bens e serviços (presentes e futuros); e não apenas para nós próprios, mas também para os nossos filhos, a quem temos obrigação de legar uma sociedade melhor organizada e equipada, mais justa e solidária — e nada disso se faz por omissão ou evasão.

Além disso, admitindo que as taxas são excessivamente elevadas, em princípio são-no para todos, e há aí um princípio de justiça. A injustiça estão a cometê-la aqueles que fogem ao fisco, porque beneficiam ilegitimamente da taxa zero. E se todos, ou a maioria cumprir as suas obrigações fiscais, o Estado arrecadará mais e as taxas poderão ser reduzidas. Isto é, os que fogem ao fisco são os principais responsáveis pelas taxas elevadas, que eles não suportam, mas que utilizam falaciosamente como argumento para não pagar.

O segundo argumento é, geralmente, o mau uso que o Estado faz do dinheiro dos impostos. Esta acusação é verdadeira. Todos sabemos que há desperdício, imensos casos de má gestão, desvio de fundos públicos para benefício próprio ou de terceiros. E temos todos interesse e obrigação de combater esse mau uso, usando todos os meios legítimos para o fazer. Só que, ao praticar a evasão fiscal, não estão a combater os vícios da máquina do Estado. De certo modo estão a perpetuá-los, porque é também a falta de meios que prejudique o combate eficaz à fraude e má gestão. Além disso, para serem coerentes, teriam que abdicar voluntariamente de recorrer aos bens e serviços públicos, que eles não pagaram, porque isso também "mau uso".

Terceira alegação: não pago, porque os outros também não pagam. Isto já não é um argumento, é uma desculpa esfarrapada. Em primeiro lugar, há aí uma meia verdade, porque muitos (pelo menos aqueles que auferem rendimentos contabilizados) pagam. Em segundo lugar, não é porque o meu vizinho procede mal, que eu vou agir de igual modo; lá porque há assassinos e ladrões, não me vou transformar num assassino e ladrão.

Em todas essas situações há aspectos comuns. Todos, de forma mais ou menos consciente, sabem que têm o dever moral de contribuir financeiramente para a manutenção e melhoria do Estado. Mas deixam-se gostosamente seduzir por uma prática social profundamente arreigada, porque vai de encontro ao seu natural egoísmo, que manda cuidar de si, sobretudo em prejuízo dos outros. Embora esse egoísmo seja natural no ser humano, é também natural o espírito de comunidade, que implica cooperação e solidariedade. Conseguir um adequado equilíbrio entre essas duas tendências é uma tarefa fundamental. Se esse equilíbrio é entre nós ainda incipiente, isso deve-se certamente a múltiplos factores de natureza histórico-cultural, mas talvez o mais importante seja o facto de em Portugal o Estado ter sido, até muito recentemente, uma criação feita de cima para baixo, uma estrutura de dominação em que a relação entre custos e benefícios estava profundamente desequilibrada. É provavelmente essa imagem do Estado espoliador, que tudo leva e nada dá, que continua a prejudicar a construção dessa consciência cívica, sem a qual não há verdadeira democracia.

(Abril/98)


Copyright © 1998 Jorge Santos  
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