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Apresentação

 

Ao pensar no modo como me haveria de apresentar à comunidade internauta, não resisti à tentação de transcrever a abertura do poema dramático de João Cabral de Melo Neto , que se tornou muito conhecido na década de sessenta graças à versão teatral com música de Chico Buarque de Holanda (dois grandes poetas reunidos num projecto que mostra claramente que a Poesia está em toda a parte, está sobretudo no modo como vivemos a vida).
Os mais velhos guardarão certamente na memória ecos desse projecto, pois, na altura, pelo menos um dos fragmentos da peça correu mundo com o título de Funeral de um Lavrador («Essa cova em que estás/ com palmos medida/ é a conta menor/ que tiraste em vida»). Curiosamente, a versão que me chegou aos ouvidos, por essa altura, através da rádio angolana, não foi a de Chico Buarque, gravada em 1967, mas a de um anónimo duo Bárbara & Dick , provavelmente por gentileza da censura (portuguesa e brasileira), para as quais o nome do poeta-compositor era pouco simpático.
Anos depois, tive oportunidade de ouvir uma gravação das passagens musicais dessa peça e quando me caiu debaixo dos olhos uma edição das Poesias Completas de João Cabral de Melo Neto não hesitei dois segundos.
Ora a apresentação de Severino poderia ser a de qualquer ser humano. Todos recebemos à nascença um nome; todos tivemos pai e mãe, somos todos, portanto, Severinos da Maria do Zacarias; todos nascemos na serra da Costela ou outra serra qualquer; tal como Severino, todos procuramos no mundo um lugar melhor para viver, um lugar onde a felicidade seja possível, onde possamos criar os filhos e ver os netos florescer. Na verdade, todos fugimos de alguma coisa: da miséria, da opressão, do medo, da tristeza, da ignorância, do tédio...
Somos todos retirantes !
Retirantes têm sido os portugueses, sempre em busca de melhores oportunidades, na peugada da Reconquista, na esteira das naus dos Descobrimentos, nos porões dos veleiros transoceânicos, na aventura do império colonial. Mais perto de nós, retirantes são os emigrantes em Franças e Araganças.
Retirante, afinal, sou eu também, com a vida repartida por três continentes, partilhando três culturas, iguais e diferentes — a portuguesa, a angolana e a brasileira; e receptivo, tanto quanto possível, às outras, mais estranhas, mais exóticas, mas tão nobres comos estas que herdei e vivenciei e me cumpre enriquecer. E enriquecê-las é abri-las às outras, dando e recebendo, em compreensão, em solidariedade, em tolerância.
É essa a minha e a nossa riqueza, se a quisermos aproveitar. A pobreza, a opressão, a miséria obrigaram-nos a largar o ninho aconchegado e mesquinho em que nascemos. Por isso, e por insatisfação, partimos. E ao partir, descobrimos que há mais mundo para além do mundo que se avista da torre da nossa aldeia. E quando regressamos, voltamos diferentes: mais ricos, mais experientes, mais tolerantes; menos seguros das nossas certezas, mas mais confiantes de alcançar a verdade; menos dispostos a aceitar a arrogância dos senhores da riqueza e do saber; menos reverentes perante a tradição e os hábitos estabelecidos, mas mais criativos.

(Maio/98)


Copyright © 1998 Jorge Santos
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