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Tal como eu, muitas pessoas em Portugal foram surpreendidas com o golpe militar na Guiné-Bissau. Os media, salvo acontecimentos excepcionais como este, não dão muita atenção aos PALOP e o público é ainda mais desatento. Na realidade, o que nos surpreendeu não foi o golpe em si, facto que consideramos 'normal' em países subdesenvolvidos, mas sim a indefinição subsequente e consequente guerra civil.
Como explicar essa desatenção?
Em primeiro lugar, todos nós ostentamos em relação ao terceiro mundo uma atitude de superioridade que nos leva a considerá-los como países de segunda classe, onde tudo o que é indesejável acontece inevitavelmente. Aquilo que para nós é condenável é lá normalíssimo: analfabetismo, carências culturais, ineficiência económica, corrupção, guerra endémica, doença, fome, morte prematura...
Em segundo lugar, o país (a população e o Estado) está muito mais voltado para o mundo desenvolvido, de que fazemos ou queremos fazer parte, e o reflexo disso é a atitude dos media, que só pontualmente, e em situação de desastre, se viram para o resto do mundo. Tudo isso é compreensível; resta saber se é desejável reduzir de tal maneira o nosso universo. É que toda a redução é uma limitação; no limite estou eu e o meu umbigo...
Finalmente, para nós, entre os PALOP nem todos têm o mesmo estatuto. À cabeça está inevitavelemnet Angola, seguida de perto por Moçambique. Cabo Verde, talvez porque aparentemente mais aportuguesado, tem nesse universo um estatuto especial. Em último lugar estão a Guiné-Bissau e S. Tomé e Príncipe.
Situação interna
Apesar de toda essa desatenção, a que eu também não sou alheio, vamos ver se conseguimos compreender melhor a situação interna da Guiné, ao longo destes últimos anos.
A acção aculturante (civilizadora, diriam os adeptos do antigo regime) de Portugal na Guiné nunca foi muito acentuada. Durante muito tempo, os europeus tiveram dificuldade em resistir às condições climatéricas e doenças endémicas, o que não facilitava o estabelecimento de colónias numerosas. Numa perspectiva económica, desde o século XVI até o século XIX, as zonas equatoriais não ofereciam grandes atractivos aos europeus; praticamente a única fonte de riqueza eram os homens, desde que escravizados e transferidos para zonas mais propícias, por exemplo o Brasil. De forma sumária, estes dois factores explicam que a presença portuguesa tenha sido sempre litoral e reduzida. Isso, e as condições do clima, explica igualmente a dificuldade que o exército português teve em controlar a guerrilha nos anos sessenta e setenta.
O que eu quero dizer é que durante a sua presença no terreno, Portugal não exerceu efectivamente uma acção unificadora, de natureza linguística, cultural e económica, que permitisse ao 'povo guinéu' constituir-se e criar condições para uma adopção pacífica de modos de vida ocidentais. Provavelmente a acção unificadora mais eficaz foi a desenvolvida pelo PAIGC durante a guerra.
Após a independência, o país teve uma evolução algo atribulada. O actual presidente, Nino Vieira, ascendeu a essas funções na sequência de um golpe de estado, apesar de posteriormente ter sido legitimado por eleições mais ou menos democráticas (se é que é possível haver eleições democráticas naquelas condições).
De qualquer maneira, e independentemente dos regimes, as condições de vida da população parecem não ter melhorado muito nestas duas décadas. Aliás, em África, e de um modo geral em todo o terceiro mundo, há uma série de condicionalismos que atrapalham o desenvolvimento económico, tal como nós o entendemos. A maioria da população não possui qualquer tipo de qualificação que propicie uma integração efectiva no modo de produção capitalista, sendo constrangida a uma agricultura de subsistência, com recurso a técnicas agrícolas tradicionais. Nessas condições, a produção de excedentes é inviável ou reduzida; e sem esses excedentes sabemos que é praticamente impossível o investimento produtivo. O sector agrícola mais rentável é o dedicado à agricultura de exportação, que, no entanto, está dependente de condições de troca desfavoráveis, tanto mais que os circuitos internacionais de comercialização são controlados pelas grandes multinacionais. O sector industrial é incipiente, dado o reduzido poder de compra da população, e os serviços praticamente reduzem-se à burocracia estatal. Afinal, nada de muito diferente do que acontecia no nosso país Há duas gerações atrás.
Nestas condições, há tendência para a constituição de uma classe de privilegiados, estreitamente associada ao exercício do poder de estado, que canaliza em seu benefício os excedentes económicos, quando não as ajudas disponibilizadas pela comunidade internacional. Geralmente tomamos consciência desse fenómeno, quando as condições políticas revelam a acumulação de fortunas colossais em nome de certos dirigentes políticos, postas a recato no exterior (os casos de Ferdinando Marcos, das Filipinas, e de Mobutu, do Zaire, são apenas alguns dos mais recentes e mediáticos).
Isso ajuda-nos a entender melhor a ausência de apoio da população guineense ao governo legal e a ruptura do exército com esse governo. No caso da Guiné-Bissau seria previsível que o golpe triunfasse rapidamente, o que não aconteceu, unicamente por força do apoio de países vizinhos, principalmente Senegal, ao governo. É evidente, hoje, que o presidente não conta com o apoio, nem da população, nem do exército. Para resistir ao golpe teve que recorrer ao apoio das forças militares senegalesas, o que representa uma dependência inaceitável perante um país estrangeiro. Aliás, a tendência hegemónica do Senegal na região, parece esconder a influência real da França, o que parece confirmado por recentes notícias relativas à presença de navios de guerra franceses na Guiné-Bissau.
Cooperação de Portugal com os PALOP
De forma algo surpreendente, o governo português agiu, quanto a mim, atempadamente nesta crise. No passado, em situações semelhantes, remetia-se a vagas e inócuas declarações diplomáticas, deixando que outros, mais poderosos e capazes, tomassem as providências necessárias, mesmo quando estava em causa a segurança de cidadãos portugueses.
Desta vez, diga-se o que se disser, foi diferente. Portugal foi o primeiro país a agir, montando uma operação de evacuação que permitiu a retirada do país de numerosos estrangeiros, antes que a situação militar se tornasse verdadeiramente perigosa. De seguida, e perante o impasse criado, envolveu-se, juntamente com o governo angolano, numa mediação cheia de boas intenções, mas, até o momento, ineficaz. essa ineficácia resulta, certamente, da inexperiência e, sobretudo, do reduzido peso político dos mediadores. Mas parece evidente, também, que há outras forças envolvidas, nomeadamente a França, como já vimos, que em nada facilitam essa tarefa. O que é verdadeiramente lamentável neste caso é a incapacidade de criar condições para fazer chegar às populações a ajuda humanitária de que necessitam.
Ora, em toda esta situação, percebem-se com clareza as deficiências da política de cooperação de Portugal com as suas antigas colónias.
A afirmação é arriscada, mas é provável que uma política de cooperação mais activa por parte de Portugal, nas últimas duas décadas, pudesse ter ajudado a criar condições de progresso na região. De qualquer maneira, e isso é seguro, uma maior presença teria contrariado a progressiva subordinação da Guiné-Bissau aos interesses de vizinhos mais poderosos e da potência hegemónica na região — a França.
É verdade que Portugal tem no mundo um peso reduzido, mas isso não justifica a apatia. No caso concreto dos PALOP, tem, relativamente a outros mais poderosos, algumas vantagens. Desde logo, a língua e alguns traços culturais comuns; um conhecimento efectivo da região, resultante de séculos de presença colonial; e finalmente, e não menos importante, uma relação afectiva com África, que muitos outros não possuem.
Efectivamente, creio que Portugal poderia colaborar mais e melhor, em muitos aspectos, com as suas antigas colónias, agora que os traumas do colonialismo foram ultrapassados. A área prioritária é certamente a da educação; aí dificilmente outro país nos poderá suplantar; e criar uma estrutura educativa capaz de atingir o conjunto da população é uma tarefa fundamental em qualquer país, mais ainda em regiões carenciadas como a África. Outra área de intervenção é certamente a da saúde; apesar das carências que ainda se verificam no nosso país, creio que Portugal poderia ser muito útil na formação de pessoal sanitário e na criação de estruturas básicas de saúde. o mesmo se poderia dizer quanto à organização da estrutura administrativa. Finalmente, ao nível económico, aquele que sustenta os demais, poderíamos certamente ter um papel mais interventivo; havendo condições políticas favoráveis, seria possível convencer alguns milhares de portugueses, muitos deles com ligações directas ou indirectas a África, a empenharem-se em actividades produtivas, sobretudo no âmbito da agricultura de exportação.
(Julho/98)