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Caos social

 

Nos últimos dias a greve voltou a ser tema de actualidade. É sempre assim: só damos por elas, quando incomodam e só têm força reivindicativa, porque incomodam.

No ano passado aconteceu isso com os pilotos da TAP, lembram-se? Agora são os pilotos dos portos e os motoristas de produtos perigosos. Os pilotos da TAP conseguiram os seus objectivos, ao menos em parte, porque mostraram que podiam facilmente transformar os aeroportos num pandemónio. É que as viagens de avião deixaram há muito de ser um luxo e qualquer perturbação mais séria na fluidez das ligações complica a vida de milhares de pessoas e o funcionamento de muitos sectores económicos. Nessa altura a imagem dos pilotos junto da opinião pública foi algo abalada, pelos transtornos que causaram, é certo, mas sobretudo porque constituem uma classe privilegiada em termos salariais. Tratando-se duma empresa pública sistematicamente deficitária, muita gente ter-se-á perguntado porque hão-de os contribuintes pagar os privilégios dos pilotos.

Agora, algo de semelhante acontece com os pilotos da barra. Também eles constituem um grupo profissional com uma qualificação muito específica e uma expressão numérica reduzida, o que facilita a coesão. Além disso, com um poder real imenso: o de paralizar inteiramente o movimento nos portos. Com a greve eles atingiram alguns dos seus objectivos: deram visibilidade à classe, por um lado, e mostraram claramente o poder que têm nas mãos e que, repito, é superior ao dos pilotos aéreos. É que, com alguns transtornos, os serviços de uma companhia aérea podem ser substituídos por outras; os serviços prestados pelos pilotos da barra são de facto insubstituíveis, como eles fizeram questão de frisar e o próprio governo implicitamente reconhece.

No entanto, e aí poderá ter havido algum erro de avaliação da parte dos grevistas, numa sociedade moderna todo o poder, por maior que seja, é limitado e condicionado. De certo modo, o governo também quis sugerir isso mesmo, ao suspender temporariamente o regulamento de atracagem nos portos do continente, permitindo que os comandantes dos navios, por sua iniciativa e em certas condições, entrem e saiam dos portos sem a ajuda dos pilotos de barra. A decisão é discutível, porque comporta riscos evidentes, mas nenhuma outra alternativa parece aceitável.

Paralelamente, decorria uma outra greve com grande impacto mediático — a dos motoristas de produtos perigosos, que, além das reivindicações habituais (salários e condições de trabalho), contestavam o sistema de avaliação em vigor, que, na sua opinião, poderia impedir o exercício da actividade a alguns dos motoristas. Também aqui os efeitos se fizeram sentir quase imediatamente, com o encerramento de alguns postos de abastecimento por falta de combustível.

Não vou aqui discutir as razões das partes em confronto, em nenhuma destas greves, por falta de elementos suficientes. O que posso dizer é que não é de ânimo leve que um grupo profissional recorre à paralização, visto que ela tem custos evidentes. Também é verdade que, nestes conflitos geralmente as exigências apresentadas são excessivas, ou se quiserem maximalistas, até porque se pressupõe que durante o processo negocial haja cedências de parte a parte.

O que eu quero aqui salientar é a relativa fragilidade das sociedades modernas perante qualquer situação de crise. Atingimos um tal grau de complexidade, com uma tão grande interdependência, que a paralização súbita num determinado sector se reflecte imediatamente em vários outros. No caso concreta dos motoristas, por exemplo, o prolongamento da greve por mais alguns dias ameaçava paralizar meio país.

Estes pequenos episódios domésticos ajudam-nos a compreender melhor algumas tragédias a que temos assistido por esse mundo fora e que, confortados com a nossa relativa estabilidade, pensamos não nos poderem atingir. A situação actual na Guiné-Bissau é exemplar. Do alto da nossa arrogância temos tendência para explicar as enormes dificuldades e carências que quase toda a população vive neste momento, como resultado inevitável da pobreza e subdesenvolvimento do país, para não dizermos do 'atraso' das populações. Mas a verdade é que ainda há pouco tempo, com o seu atraso, a sua pobreza, o seu subdesenvolvimento, toda essa gente levava uma vida normal. E de repente tudo se desmoronou. Porquê? Simplesmente porque a instabilidade política e militar impediu que os mecanismos de produção e distribuição funcionassem. Isso é o suficiente para em poucos dias virar um país de pernas para o ar e reduzir a maioria da população à indigência. É uma ilusão nossa pensar que coisas deste tipo seriam impossíveis no nosso país.

Portanto, é importante tomar consciência dessa fragilidade das sociedades modernas, e pensar seriamente em mecanismos de compensação, para o caso de um sector de actividade vital paralizar, e não necessariamente por questões laborais. Não nos esqueçamos da tal máxima que diz que, se alguma coisa pode correr mal, de certeza que vai correr mal.

(Julho/98)


Copyright © 1998 Jorge Santos  
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