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As denúncias do general Garcia dos Santos tiveram pelo menos um mérito: obrigaram os políticos e o a Procuradoria da República a debruçar-se de novo sobre os casos suspeitos de corrupção, que é um assunto sério e sistematicamente mal tratado.
Ciclicamente surgem denúncias ou indícios de corrupção nesta ou naquela área. E repete-se sempre o mesmo processo: as denúncias dão lugar à indignação generalizada; reitera-se mais uma vez o empenhamento no combate a esse flagelo; iniciam-se inquéritos ou aceleram-se os que estão em curso; entretanto, alguém se demite ou se afasta ou é demitido, alegando uma qualquer razão plausível; durante alguns dias a comunicação social explora esse facto e, por vezes, desenterra outros semelhantes; passa-se logo a seguir à fase de tranquilização da opinião pública — os inquéritos estão a decorrer, as instituições funcionam, há que aguardar com tranquilidade os resultados. E de facto a opinião pública tranquiliza-se, até porque, entretanto, outro assunto qualquer ganhou actualidade...
Em pouco tempo, uma cortina de silêncio abate-se sobre a questão — ele é o segredo de justiça, o segredo administrativo, quem sabe que outros segredos!
Tudo estaria bem, se a opinião pública tivesse confiança nas instituições. Seria possível dizer, e essa explicação seria aceite pacificamente, que a corrupçãp não é um problema grave em Portugal, porque os casos pontuais verificados, têm sido detectados, investigados e devidamente punidos.
O problema é que ninguém acredita que esses casos pontuais, devidamente investigados e julgados, sejam os únicos, nem sequer a maior parte. A convicção generalizada, mesmo ao nível político (a avaliar pelo frenesim do governo e da oposição), é que esses constituem apenas a ponta de um imenso iceberg. E, de facto, não faltam por aí indícios, no mínimo perturbadores: são os prédios que misteriosamente ganham um ou dois andares relativamente ao projecto inicialmente aprovado; espaços públicos que dão lugar a construções; ruas cortadas ou encanadas debaixo de prédios; edifícios com interesse histórico e/ou arquitectónico que vêm abaixo e são substituídos por prédios reluzentes; obras públicas com custos finais muito superiores aos contratados; terrenos adquiridos por preços anormalmente elevados; enfim, um sem número de situações estranhas e dificilmente explicáveis à luz do senso comum.
Mesmo admitindo que algumas dessas situações são justificáveis em função de factores não imediatamente perceptíveis, a verdade é que sobra ainda muita coisa por explicar, o que leva cada um de nós a concluir que grassa a este nível uma impunidade inaceitável.
E pior ainda que a corrupção, é a impunidade, porque é ela que cria condições para que a corrupção alastre a toda a sociedade, como acontece em alguns países, onde a lei é uma pura ficção. Felizmente, em Portugal, o sentimento dominante é o de que a corrupção é de facto ilegal e ilegítima, ao contrário do que acontece, por exemplo, relativamente às questões fiscais . Por isso, o importante é tentar perceber as razões dessa impunidade.
A mais evidente é, talvez, uma certa ineficácia da máquina judicial. De facto, as situações sudceptíveis de corrupção são realidades muito complexas, onde os actos ilícitos se diluem e escondem numa profusão de procedimentos técnicos e administrativos, pelo que é muito difícil aos investigadores encontrar a agulha que procuram no palheiro. Há, a este nível, uma clara insuficiência de meios, sobretudo de recursos humanos com a qualificação necessária. A mesma dificuldade é sentida, aparentemente, ao nível do aparelho administrativo, que se mostra incapaz de acompanhar e fiscalizar de forma eficaz a imensidade de actividades em que o Estado é parte interessada.
A própria lei impõe restrições à eficácia da investigação. Os crimes de corrupção implicam, geralmente, uma transferência ilegítima de fundos monetários, envolvendo vários intervenientes. Cria-se assim uma teia de operações financeiras que, a certa altura, fica protegida pelo sigilo bancário. É verdade que em certos casos esse sigilo pode ser suspenso por decisão judicial: mas todos sabemos também que os envolvidos têm quase sempre o cuidado de camuflar o melhor possível os seus proventos ilícitos, que poderiam constituir provas do crime, e portanto dificilmente eles serão encontrados em contas pessoais. Segundo alguns reputados especialistas, é impossível combater eficazmente a corrupção e outras actividades ilícitas sem acabar com a figura jurídica do sigilo bancário.
Contra esta possibilidade apresentam-se dois argumentos: a eliminação do sigilo bancário seria uma violação da privacidade e por outro lado tal medida levaria à fuga de capitais.
É verdade que implica uma certa violação da privacidade individual, mas por uma boa causa. Na realidade, o que temos aqui é um conflito de valores e, quando isso acontece, deve optar-se pelo valor superior; o defesa do bem público, que justifica o combate à corrupção, deve sobrepôr-se ao direito individual de privacidade. Além disso, eliminar o sigilo bancário não significa 'tornar pública' essa informação, mas sim disponibilizar a sua consulta às entidades legalmente competentes. Aliás, nesta e em outras situações, 'quem não deve, não teme'; estou convencido de que, para a maioria das pessoas, a eliminação do sigilo bancário não é um problema, pela simples razão de que os seus bens têm uma origem legítima.
Quanto à fuga de capitais é uma pura especulação. É perfeitamente compreensível que o 'dinheiro sujo' procurasse paragens mais acolhedoras, mas será que nós queremos esse dinheiro? Talvez fosse a maneira de 'exportar' certa criminalidade. Mas não vejo por que razão as pessoas que actuam dentro da legalidade haveriam de pôr o seu dinheiro em Badajoz. A não ser que admitamos que há muito mais gente com algo a esconder...
Outra coisa que intriga a opinião pública é a passividade dos sucessivos governos face a esta situação, o que leva muita gente a suspeitar que exista conivência dos vários partidos nos actos ilícitos de empresas públicas e privadas. É que toda a gente 'sabe' que a lei de financiamento dos partidos é uma ficção, principalmente no que respeita aos limites de despesas com as campanhas eleitorais. Face ao estendedal de meios ostentados pelos partidos, ninguém acredita que as contas apresentadas sejam reais. Na realidade, são os próprios partidos que confirmam a suspeita ao apresentarem ciclicamente projectos de revisão da referida lei. O último foi o PSD, pela voz do seu presidente, Marcelo Rebelo de Sousa, na sequência do caso JAE.
Sendo assim, subsiste a dúvida: onde vão os partidos buscar os fundos necessários às campanhas mediáticas a que nos habituaram, já que as contribuições dos militantes e simpatizantes e as dotações orçamentais são manifestamente insuficientes? Quem nos garante que alguns desses recursos encapotados não provêm de ganhos ilícitos das empresas, que, assim, estariam a tentar 'comprar' a passividade dos partidos?
Uma coisa é certa: onde houver dinheiros públicos a circular ou onde a acção fiscalizadora do Estado puder interferir com interesses particulares, há condições para o aparecimento da corrupção. Nomeadamente nos contratos para a realização de obras públicas, é fundamental que os cadernos de encargos especifiquem detalhadamente e exaustivamente as terfas a executar, para que não haja condições para trabalhos complementares à margem do concurso. Não é aceitável que sistematicamente as obras públicas tenham custos muito superiores ao previamente estipulado. Qualquer medida que não inclua total rigor e transparência das empreitadas é inócua.