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Vida Rural

 

HABITAÇÃO
HIGIENE E CONFORTO DOMÉSTICO
COMUNICAÇÕES
ECONOMIA

Todo aquele que tenha menos de 40 anos e tenha crescido num meio urbano será incapaz de reconstituir, por falta de referências vivenciais, a vida nos lugarejos perdidos do interior de Portugal, na primeira metade do século. À falta de vivências, é necessária muita informação e alguma sensibilidade para imaginar o que era viver nessas aldeias.

Era um mundo completamente diferente do que conhecemos hoje. Na zona das Beiras e em Trás-os-Montes a população concentrava-se em pequenas povoações de duzentas ou trezentas pessoas, a avaliar pela quantidade de habitações dessa época que ainda hoje existem. E esses pequenos "lugares" sucediam-se quase ininterruptamente, distando entre si poucos quilómetros: é frequente que dum ponto elevado se avistem quatro ou cinco aldeias.

Dependendo da agricultura, exercida em condições muito desfavoráveis, a pobreza era geral e a emigração a única saída.

A qualidade dos terrenos, o relevo, o clima e as técnicas agrícolas utilizadas determinavam que a produtividade fosse relativamente baixa. As condições de higiene eram certamente precárias e a mortalidade, sobretudo entre as crianças, elevada, mas como a taxa de fertilidade era muito alta, globalmente a população ia aumentando, gerando excedentes populacionais que só a emigração poderia absorver.

Estou convencido, por esse motivo, de que os fluxos migratórios das zonas rurais do interior norte-centro terão sido uma constante nos últimos séculos, talvez desde o século XVI. Aliás, esses excedentes populacionais terão sido uma das razões do sucesso da expansão ultramarina portuguesa. Os historiadores têm certamente elementos documentais que podem confirmar esta afirmação. Mas relativamente às épocas mais recentes a memória colectiva tem presente a figura do "brasileiro" do século XIX. Esse surto migratório para o Brasil prolongou-se por toda a primeira metade deste século, como documenta a história da minha família paterna — uma entre muitas.

Habitação Seta

As condições de habitabilidade das residências aldeãs eram arcaicas para os padrões de hoje. O espaço central era a cozinha onde se concentrava a vida doméstica. Os quartos de dormir eram geralmente em número limitado, de pequenas dimensões e frequentemente reduziam-se a minúsculas câmaras interiores ocupadas quase exclusivamente pela cama. Olhando para algumas dessas casas, muitas vezes reduzidas hoje à função de palheiros ou arrecadações, é difícil imaginar que ali viveram durante centenas de anos famílias que podiam facilmente chegar a dez, doze pessoas. Provavelmente, à medida que os filhos iam nascendo, os mais velhos eram transferidos para instalações anexas.

A pobreza não se notava apenas no vestuário, rústico, quase indigente, muito diferente dos trajes regionais popularizados pelos ranchos folclóricos, mas sobretudo nas habitações, carentes do mais elementar conforto.

Nas décadas de 50 e 60, em muitas dessas casas era possível encontrar já uma sala de jantar, mobilada com mais cuidado: uma mesa quadrada extensível, algumas cadeiras, um guarda-loiças. As paredes estavam geralmente decoradas com estampas religiosas ou reproduções populares, juntamente com os retratos familiares. Constituía, tal como nas zonas urbanas, o espaço nobre da casa. Aliás, deveria ser uma inovação recente, resultante da imitação do modo de vida urbano. Em tempos mais remotos esse espaço certamente acolheu o quarto do casal.

O mobiliário doméstico era reduzido: na cozinha, uma mesa, uma cantareira, os bancos e escanos necessários; no interior, as camas e as arcas onde se guardavam as roupas e outros pertences e, por vezes, um lavatório — hoje transformados em curiosas peças decorativas  pagas por bom preço nas lojas de antiguidades. Na cozinha, a lareira permanecia acesa de manhã à noite: ali se confeccionavam as refeições e durante o longo Invern era ela o único meio de aquecimento.

Higiene e conforto doméstico Seta

A higiene reduzia-se ao elementar: uma lavagem rápida da cara e das mãos pela manhã, geralmente  no lavatório da cozinha. Os banhos eram reservados para as ocasiões festivas e implicavam procedimentos complicados, dada a inexistência dos equipamentos hoje comuns. As instalações sanitárias eram um luxo reservado apenas aos mais abastados. A maioria não ia além do bacio usado durante a noite — o vulgar penico — que era despejado no exterior pela manhã. Durante o dia as necessidades fisiológicas eram satisfeitas fora de casa em recantos escondidos. Aos poucos foram sendo instaladas no exterior fossas equipadas com retretes elementares. A construção de verdadeiras casas de banho no interior foi bastante posterior: só começou a generalizar-se à medida que os contactos com o modo de vida urbano se foram tornando mais frequentes. É provável que esse "luxo" tenha sido uma exigência dos jovens que a pouco e pouco iam prolongando a escolaridade fora da aldeia.

Isolados, fisicamente e culturalmente, sem recursos, os aldeões desconheciam as mais elementares regras de higiene.

O conforto doméstico estava, portanto, bastante longe daquilo que hoje nos parece elementar. O mobiliário, como disse, reduzia-se ao essencial e exalava pobreza. A energia eléctrica e a água canalizada eram coisas da cidade e muitos consideravam-nas perfeitamente dispensáveis. Ora, sem elas, toda a vida moderna é impensável. Em meados do século XX vivia-se ali como no século XIX.

A iluminação pouco tinha evoluído. À noite abatia-se sobre a aldeia uma profunda escuridão. As ruas ficavam sujeitas à luz baça da lua. No interior das habitações a situação não era muito melhor. É verdade que o azeite há muito que deixara de ser utilizado como combustível, mas o petróleo, mais eficaz é certo, era usado parcimoniosamente; muitas vezes a melhor fonte de luz era a lareira; uma minúscula candeia permanecia acesa sobre o lar e com ela se desvaneciam as trevas sempre que era preciso procurar algum objecto num recanto mais sombrio. Toda a gente possuía, no entanto, candeeiros com manga de vidro que a pouco e pouco se foram generalizando. Verdadeiro luxo eram os "petromax", pela intensidade da sua luz.

Comunicações Seta

As comunicações com o exterior eram difíceis. Muitas dessas povoações eram servidas por estradas de terra batida onde os automóveis circulavam com extrema dificuldade. Obviamente, só os mais afortunados — o padre e um ou outro "ricaço" — tinham transporte próprio. Todos os outros dependiam da camioneta, que era preciso apanhar longe de casa. Tudo isso tornava as deslocações penosas e dispendiosas, e portanto raras. Quando a frequência do liceu ou da escola técnica começou a tornar-se necessária, as famílias tinham que alojar os filhos na vila, mesmo quando ela estava relativamente próxima, despesa que muitas não podiam suportar.

Além da "economia de sobrevivência" a que estavam sujeitos, o isolamento deve ter sido o maior factor de atraso destas populações.

O rádio durante muito tempo foi uma curiosidade. Meu pai, nascido e criado na aldeia, lembra-se que o primeiro que viu foi levado para lá por um dos párocos da freguesia, quando ele ainda era garotote; recorda que quis apreciar de perto o funcionamento do aparelho, mas, pela sua pouca idade, isso não lhe foi permitido. Esse convívio com a novidade deve ter sido reservado aos adultos mais prestigiados. Só o aparecimento dos transístores, na década de 60, fez da rádio uma realidade familiar, mas de uso limitado, porque havia que prolongar a duração das pilhas.

Todas essas novidades da sociedade moderna eram "objectos de luxo", reservado a uma minoria e, portanto, inacessíveis aos homens comuns. Mesmo essas minorias — os padres, os professores, os lavradores mais abastados, um ou outro médico (recordo que a minha aldeia teve durante bastantes anos um médico residente, o que deveria ser extremamente raro!) — tinham dificuldade em beneficiar dos progressos da civilização. O impedimento maior era certamente a inexistência de energia eléctrica. Por vezes procurava suprir-se essa falta com baterias, mas obviamente essa era uma solução pouco eficaz: além de caras, esgotavam-se rapidamente e não havia na aldeia meios para as recarregar. Uma solução experimentada durante algum tempo foram os geradores eléctricos. Um dos meus tios, o P. Alberto Gonçalves Marques, mandou instalar na chaminé da residência paroquial um gerador accionado pelo vento, com o qual (suponho eu) pretendia fornecer à residência iluminação eléctrica. É fácil deduzir que o resultado prático não deve ter sido muito diferente do conseguido com as baterias... Frustradas essas tentativas, parece ter-se instalado em todo o lado a resignação. O facto é que, da minha infância, recordo as lamparinas e candeeiros de petróleo, os petromax nos dias de festas e os rádios de pilhas.

Economia Seta

Todas essas comunidades praticavam uma agricultura de subsistência. A batata e o centeio ocupavam o grosso da atenção por constituírem o essencial da dieta alimentar de ricos e pobres. Nos melhores terrenos e mais próximos mantinha-se a horta familiar, que permitia enriquecer essa dieta. O feno e o milho eram fundamentais para manter o gado, basicamente vacum. Tanto quanto posso recordar, as vacas constituíam um elemento fundamental na economia familiar. Eram utilizadas como força de tracção no transporte e no amanho das terras: os carros de bois, tão característicos da nossa vida rural, foram durante muitos séculos o principal meio de transporte; na Beira eram igualmente as vacas que puxavam o arado de madeira ou a charrua de ferro.

É fácil imaginar que os excedentes agrícolas deviam ser muito reduzidos e limitados basicamente à batata e centeio. A pecuária constituía um complemento dessa economia familiar de subsistência. Creio que os excedentes agrícolas eram recolhidos nas aldeias por intermediários que se encarregavam de os encaminhar para o litoral onde eram comercializados. Por sua vez, o gado era transaccionado nas inúmeras feiras que, em datas certas, se realizavam por todo o país, cada uma delas com suas características próprias. Muitas delas subsistem hoje, embora adaptadas aos tempos modernos. Eram os recursos financeiros obtidos nessas escassas transacções que permitiam aos lavradores de antanho adquirir os bens impossíveis de produzir localmente: tecidos finos, louças, artigos domésticos, alfaias agrícolas...

Nestas condições, a dieta alimentar era necessariamente duma frugalidade extrema. A batata e o pão eram omnipresentes e garantiam a subsistência de todos durante o ano. Quando algum deles faltava, era a fome que se instalava, em maior ou menor grau, por todo o lado. E o caldo, que não exigia mais do que alguns legumes e unto (gordura de porco), completava essa dieta. A carne, por estranho que pareça, era um recurso escasso e, por isso, usado parcimoniosamente. Cada família dispunha do seu galinheiro e ia enriquecendo as refeições com os ovos e com as aves abatidas, mas o sistema de criação doméstica não permitia um fornecimento regular e em quantidade suficiente para suprir as necessidades alimentares de famílias numerosas. Por esse motivo acabavam por ser artigos de luxo a que se recorria em ocasiões especiais. Do mesmo modo era também frequente a criação de coelhos, o que permitia vez por outra variar a ementa.

A pobreza era também alimentar e até os "excessos" culinários em épocas específicas eram determinados por razões económicas.

Na realidade a maior fonte de proteínas animais acabavam por ser os porcos, cevados cuidadosamente ao longo do ano e abatidos nas "matanças" de Dezembro e Janeiro. A maior parte dessa carne era conservada para consumir ao longo do ano, constituindo uma reserva alimentar preciosa, recorrendo às técnicas do fumeiro e da salga. Quem não conhece os enchidos e o presunto típicos das zonas rurais? Todas as partes que não eram passíveis de conservação tinham que ser rapidamente consumidas, dando origem a refeições pantagruélicas que contrastavam com a parcimónia habitual.

Como se vê, também na alimentação reinava uma modéstia a raiar a miséria. Uma miséria estrutural, que vem da raiz dos tempos. Toda a economia dessa faixa interior assentava sobre a actividade agrícola, praticada em solos pouco férteis, com um relevo acidentado e condições atmosféricas adversas; as condições naturais quase impunham um excessivo parcelamento dos terrenos; as técnicas agrícolas eram ancestrais e presumivelmente pouco eficazes. O isolamento geográfico e cultural terão dificultado sempre o aparecimento de outras alternativas económicas. A própria estrutura socio-económica dificultava ou impedia mesmo essas alternativas, na medida em que nunca se chegou a constituir nessas áreas uma burguesia rural suficientemente numerosa para para criar uma massa crítica favorável à transformação. O resultado foi, e continua a ser, aquele que sabemos: a população foi sempre excedentária relativamente às capacidades produtivas.

É verdade que a economia das aldeias portuguesas esteve sempre centrada na agricultura, mas é bom não esquecer que há cinquenta anos atrás essas pequenas comunidades estavam condenadas a uma quase total auto-suficiência, o que exigia algo mais que agricultura. A verdade é que por todo o lado, o agricultor, frequentemente, cultivava uma outra arte. Era sempre possível encontrar barbeiros, marceneiros, ferradores, alfaiates, costureiras, enfim, essa imensidade de ofícios destinados a suprir as necessidades do dia a dia. A diferença é que raramente eram exercidas em regime de exclusividade, que o mercado o não permitia. Lembro-me de ver em algumas dessas aldeias forjas ainda em actividade. O meu avô paterno, por exemplo, tinha alguns conhecimentos de marcenaria e, nas horas vagas, era frequente encontrá-lo a ajeitar alfaias agrícolas. Sei também que o meu sogro, lavrador mediano, mantinha nas trazeiras da casa uma forja com que satisfazia as necessidades dos conhecidos.

(Setembro/98)
Copyright © 1998 Jorge Santos
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